Andarilho Viajante

Outro dia, ouvi dizer, na calçada de vovó, que ele passara tão depressa que não se escutou um ‘Bom dia’. Não aguenta ficar parado em canto nenhum. Sobe ladeira em Olinda, desce a chapada do Araripe com invejável flexibilidade, se esconde entre as árvores de Eucalipto e se deita na nascente mais próxima.

Andarilho viajante às vezes espera na janela, gosta de ver o entardecer do sertão e o luar que se estende por todo o céu estrelado. Falando em estrelas, adora sua companhia, pois sabe que elas são confiáveis e iluminam o caminho de quem está à deriva. Aliás, dia desses, andarilho viajante perdeu-se no meio da serra e precisou da ajuda de suas amigas brilhantes.

Cruzou no caminho de uma onça. Sem o animal perceber, ele o seguiu. Chegou numa toca onde a onça estirou as patas e começou a cochilar. O danado do andarilho tropeçou numa grota e a onça brava que só ela foi averiguar. Escondeu-se tão bem que o bicho não achou. Escondeu-se melhor que o sol em fim de tarde. Mas o mérito não era dele. A pobre da onça era cega. Não fez alarde, apenas desapareceu. Lá estava andarilho trepado num pé de coco, mais assustado do que menino quando vê o mundo pela primeira vez.

Danou-se a correr mais rápido quanto podia. Balançava as folhas e derrubava os galhos quando passava, acordou até o bicho-preguiça que aparecera na sua jornada. Ele nunca se sentira tão perdido. Nunca se sentira tão burro. Andarilho, que não é de pedra, debruçou-se no choro. E a chuva que deu partida não poderia vir em melhor hora. A água oriunda do céu funciona como incentivo pro nosso personagem. Desde sempre ele tem um apreço danado pela chuva. Era no quintal, na praça, no meio da rua, ele e ela sempre se encontravam. Trocavam carinhos até ela dar seu “até breve”. E vocês sabem como são esses reencontros: é um brilho no olhar, gaitadas rasgadas, uma acanalhação que só a amizade verdadeira proporciona...uma emoção natural. Ela é do mundo. Ele também. Ficou imóvel depois que a chuva foi embora. Resolveu esperar o dia (res)surgir.

Cabisbaixo e desorientado, andarilho, assim como tantos outros que se encontram despedaçados, segurou na mão da lembrança. E de repente ficou doente de banzo. Já encontrei com Andarilho viajante diversas vezes. Dobrei a esquina e lá estava ele. Apressei a velocidade das pernas. Como um cavalo desorientado, trotei rua abaixo. Mas dele não tem como correr, não tem como fugir. Não tem como acompanhar. Não tem roteiro, vive de improviso. Observa a vida alheia tocando-lhes. O barulho da sua passagem é tão calmo e silencioso. Se dobro na outro esquina ele me segue, como a água que escorre no rio e o desenho que se forma nas nuvens. A essência de sua paisagem é a invisibilidade. Ele prova que o que é invisível aos nossos olhos é o fortalecimento para o coração.

Senta na calçada comigo. Canso de correr. Ele descansa e como um bom amigo se escora em meu ombro. Repentino como a morte, ansioso como o primeiro amor, ele decide percorrer. Perde-se no tempo e o tempo pede paciência. Andarilho viajante, o mundo já conhece, de histórias e narrativas se compõe e sua construção vai ficando cada vez mais extensa. Que repertório pitoresco tem esse danado. Personagem presente em muitos causos.

Enquanto isso, todos deram por falta dele. Afinal, Andarilho é muito querido e requisitado. Perdeu-se no vasto mundo ou estava procurando um lugar pra sossegar? Entra luar, entra sol, o inverno é convidado a se mostrar. Perdido andarilho passa devagar entre uma divagação e outra, se arrasta como quem não quer chegar a algum lugar. Andarilho demonstra não querer chegar a lugar nenhum. Sua preguiça de domingo se estende pelo resto da semana.

Dizem por aí que de esperança o homem sobrevive. Que a esperança é como encontrar um prato de macarronada quando o estômago não para de resmungar. Andarilho não perde a tal de esperança de vista e decide se achar. Corre pra um lado, pro outro, tropeça, levanta, perde o caminho, volta, até esbarrar com as cores do arco-íris. Andarilho é apaixonado pela essa tal íris que vive no arco. Tão colorida que só ela, tão suave e resplandecente, de passagem breve, porém inesquecível. A ausência de íris é a saudade de quem espera. A visão encandeou Andarilho como um flash de câmera e tomou gosto: arregaçou seu desejo de reencontro e seguiu viagem logo depois que íris apagou sua última cor.

Após algumas horas, nosso protagonista avistou o mar. E como de costume mergulhou. Abraçou, se debruçou nas águas agitadas, fez pinturas de amor, descarregou o cansaço e sentiu a brisa lhe tocar. Com brisa se fez presente, se fez feliz, recarregou a bateria. Educada e suave, brisa lhe aconselhou a ficar, mas Andarilho decidiu emergir e enfrentar os obstáculos que o impediam de reencontrar sua rotina, seu cotidiano.

A noite foi difícil. Uma forte tempestade se estabeleceu diante Andarilho. Mas ele partiu com influência em um ditado que ouvira pelo trecho que passava diariamente: “quem tá na chuva é pra se molhar”. Durante sua andança percebeu que uma cobra estava prestes a dar o bote em uma criança. Andarilho pegou a cobra tão ligeiro que o menino nem viu o vulto. Andarilho, por inúmeras vezes, gosta de ser herói.

Andarilho viajante se meteu na boleia do caminhão de uma caminhoneira cearense que estava indo para as bandas do Cariri, mais especificamente para a terra do Padre Cícero, para a cidade situada aos pés da chapada, tão cantada por Luiz Gonzaga e enaltecida pelos versos de Patativa do Assaré. Rumo ao Crato. Andarilho estava prestes a voltar ao seu lugar preferido. Andarilho não tem lugar de origem, pois foi designado para correr o mundo, atravessando florestas, escalando montanhas, desafiando os limites da humanidade. A viagem foi tranquila. Agradeceu a carona com um beijo suave e um frescor que não se sente com tanta frequência.

Andarilho desembarcou na praça da sé. A felicidade era tão grande que balançou as folhas das árvores centenárias ali fincadas. Esqueceu-se de pedir licença e subiu direto pra nascente. Foi se refrescar. Agora, perdido em seus agradecimentos e entusiasmo, lembrou que sua aventura improvisada concedeu-lhe reencontros belos com chuva, íris e brisa. Apesar de estar longe de casa há mais de uma semana, ele descobriu que vento não tem roteiro, vive de improviso. Interrompeu abruptamente suas reflexões e seguiu para a Rua Teófilo. Dona Anita estava lá a lhe esperar. E ele passou suavemente para que ela sentisse sua presença. E ela respondeu: “Olha só, que ventinho gostoso”. Andarilho viajante partiu achando graça. O vento só se perde onde faz a curva.

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