Duas maçãs para Bem e Alguém
No momento em que mordi a maçã havia
uma reportagem passando na TV. Um homem foi preso por roubar duas maçãs na
feira de uma cidade do interior do Mato Grosso do Sul. Ele podia roubar uma
dúzia, mas achou conveniente levar apenas duas. Duas maçãs era o que ele queria
naquele momento, depois daria outro jeito. Ao ser questionado pela repórter o porquê
de tal atitude, o homem de poucas palavras, cabelo grisalho, camisa branca
aberta, sem botões, calção sujo de tinta, barba por fazer e olhos cobertos de secreção,
mas que aparentavam esconder uma verdade refletida pela humildade e a vergonha
do seu ato, apenas não respondeu.
Carregado pela identidade de Benjamin,
suas feições não apresentavam a ternura e a beleza que seu nome exala, mas
revelou, de certo medo, o bem que Benjamin estava fazendo. Assim como milhares
de pessoas que vivem nesse grande espaço, popularmente conhecido como Mundo,
Bem é mais um nômade que traz consigo o fardo da desigualdade social. Porém, o
que lhe incomodava é não poder cumprir uma promessa feita há alguns anos.
Nunca mais soube nenhuma informação
sobre Benjamim, então resolvi imaginar o que ele escondia por trás dos olhos
lamentosos e onde estaria aquele andarilho lutador. Penso que o cinquentão, Bem,
tinha alguém especial a quem precisava proteger. Uma pessoa indefesa e que
necessitava de mais cuidados do que ele. Eram duas maçãs: certamente uma pra
ele e outra para esse alguém. Posso imaginar o quanto Bem e Alguém devem ter
sofrido nas ruas caladas daquela cidade e posso visualizar a dor daquele homem
por não entender o seu próprio destino. Os botões que não estavam na camisa de
Bem devem ter sido úteis em alguma necessidade. Creio que ele e Alguém usaram os
botões para marcar datas especiais no calendário feito no papelão que também
servia de colchão.
Imagino que Bem já havia pensando em
aparecer na televisão, mas não daquela forma. A tinta escurecida no bolso
esquerdo do calção deveria ter sido adquirida em um galpão abandonado e nele Alguém
e Bem encontraram algumas latas de tintas abertas e aproveitaram pra brincar,
brincar de se pintor, brincar de uma vez na vida se divertirem, brincar de ser
dono do destino, brincar de sorrir. Como Bem é nômade, creio que os cabelos
grisalhos ainda são fruto do seu encantamento pela neve, quando passou por
algum lugar que nevava em um período especial, espero que tenha sido no Natal.
Os flocos de neve nunca sairão dali enquanto houver esperança.
Bem, Benjamim já deve ter conhecido
muita coisa, mas creio que a cadeia era um pequeno prédio que ele nunca queria
passar por perto. Mas, ele era um nômade. Ali, parado, preso em uma cela, mas
preso, sobretudo em seus pensamentos e lembranças, acho que Bem pensava em
alguém. Naquele Alguém que ele prometeu cuidar. Alguém parecia precioso. E será
que Alguém merecia tal abandono por causa de duas maças? Naquele momento,
certamente!
Não roubei a maçã que estava comendo,
mas também não batalhei para consegui-la, então o que me faz de diferente ou
melhor que Bem? Absolutamente nada. Roubar duas maçãs parece ser besteira, mas
as duas maças significavam tudo pra Bem. Pelo menos, naquele momento que não
era nômade, era um desejo contínuo e latente. Desejo não, uma necessidade. Enfim, penso que Benjamim roubou uma maçã pra
sua mãe e penso que ela, mesmo se tivesse tido acesso a maçã, ainda estaria
esperando Bem para o jantar. Naquele dia, Bem não voltou, o que gerou um certo
desconforto nos batimentos cansados da sua mãe.
Mas, ela lembrou que o filho era um nômade. Bem rezava dentro da pequena
cela para que sua mãe nunca visse a reportagem gravada horas atrás e também
rezou pra sair logo daquele espaço que o impedia de caminhar.
Ao nascer do sol, Bem foi liberado. O
delegado disse que ele era réu primário e que passar a noite na cadeia já tinha
sido um excelente corretivo. O corretivo do delegado apagou por algumas horas
as boas lembranças que Bem ainda guardava. O andarilho sonhador percebeu que
ali não era o seu lugar, que maçãs não eram importantes e que ser nômade era
seu destino. Ao reencontrar sua mãe o efeito do corretivo já havia passado e
ele pôde mais uma vez aproveitar o abraço maternal.
Sua mãe o recebeu com uma maçã, uma
criança havia lhe dado. Partiu a maçã e os dois comeram-na vagarosamente.
Depois saíram a passos lentos pelas ruas movimentadas daquela manhã. Bem, soltou
o último olhar para aquele lugar e viu que nada tinha mudado e as duas maçãs
que havia roubado não afetaram a vida daqueles comerciantes. Bem e sua mãe são
nômades por que não pertencem a lugar nenhum. Enquanto imaginava o que poderia
ter ocorrido com Bem, a maçã já havia sumido da minha mão e eu continuava
sentada.
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