O causo de Antônio: Entre a espingarda e a caneta


De dia um sol endiabrado. De noite uma vista angelical. As três Marias desfilam na imensidão azul acalmando os pensamentos e o coração de Antônio. Recebeu nome de Santo, pois segundo a crença popular, menino que nasce com o cordão umbilical enrolado no pescoço tem que atender por Antonio. À espera do sono, o menino raquítico e de índole em formação divaga diante de uma cachoeira de sonhos. Um deles é crescer e ser um grande escritor.
 A primeira vez que segurou uma caneta sentiu um tremor na mão, pois as palavras queriam encher o guardanapo de histórias. O mesmo sentimento de quando levantou uma espingarda.  
A ausência de sono o deixava feliz, pois era o momento mais propício para escrever e desenhar causos do cotidiano. Quando lhe faltava papel ou guardanapo, descansava sua criatividade na parede no pequeno quarto sem cor, sem vida, lotado de mofo. A casa do miúdo Antônio perdia-se no meio do sertão. De alvenaria, com poucos cômodos, um fogão a lenha e um bocado de armador distribuídos no oitão. Seu quarto, ainda que fedorento e escuro, era o seu melhor lugar no mundo. De lá dava pra ver terra, céu e até o mar reverenciando a caatinga.
Logo cedo do dia o pai de Antônio o derrubou da rede. Foram trabalhar na caatinga que se estendia naquele mormaço. O menino queria ficar em casa escrevendo, mas o pai nem sabia que ele tinha amizade com as letras.
Antônio, que não é besta nem nada, saiu de fininho desviando de cactos e cobras salientes. Achou uma sombra ventilada no meio do sertão e por ali ficou. Deixou a bunda esfriar, pois quando chegasse em casa a ‘pêia’ ia ser grande. O silêncio se apoderou. O vento foi correr pra outro canto. Logo cedo da noite Antonio acordou do cochilo desbravador, onde ele era o rei do sertão. O sorriso no rosto logo se reconfigurou quando veio na lembrança a expressão de raiva do pai. O menino saiu correndo esbaforido, os pés batiam no cotovelo de tão forte a pressa. O luar do sertão seguia iluminando seus passos. Ofegante, e em tempo de desistir, pediu ajuda à poesia:

Noite confusa, de cunho sombrio
Me mostra o caminho no meio desse desfiladeiro
Luar sossegado, pede as estrelas pra me ajudar
E invoco meu Padim ciço, tenha piedade desse menino
Perdido na caatinga vasta, com medo do desconhecido
Mostra o caminho que prometo ser fiel
Até o dia de ir pro céu.

As cigarras pausaram o canto. O silêncio se firmou. Padre Cícero, estremecido com o pedido do menino, quebrou o silêncio, e sua voz já cansada encontrou com a fé e as lágrimas de Antonio:

Sossegue seu coração, Antonio. Você me chamou e estou aqui para lhe relembrar o caminho. Sua fé é algo inabalável. Não deixe que a tristeza, o sofrimento e as dificuldades te sufoquem. Ao amanhecer encontrarás teu pai. Ele não estará bravo contigo, pois ele já não tem esse direito. Junto com teu pai, haverá mais dois homens de coração fraco. Lá também haverá dois caminhos. Só você poderá escolher qual deverá seguir. Adianto que um é como o sol endiabrado de todos os dias e o outro é como um livro em branco desejando ser preenchido. Fique em paz, meu filho!

Os olhos de Antonio arregalados e marejados, o coração batendo feito trovão, o corpo mais bambo que folha de coqueiro em dia de tempestade, a barriga cheia de um frio que subia e descia constantemente. Cada palavra, suspiro, pausa e o cansaço entre uma frase e outra, toda a fala de Padim se repetia em sua cabeça.
Assim que chegasse em casa, escreveria na parede do quarto a história do dia em que conversou com o homem mais acreditado do sertão. Antônio seguiu viagem tranquilamente, com a certeza que encontraria seu pai, porque, segundo o menino, se “Padim Ciço disse, tá é dito e mais que certo”.
Logo que o sol nasceu, Antonio saiu cantarolando. Ouviu um zumbido tão de repente, mais de repente que o recado que escutara noite passada. Era a voz de dois homens, mas não reconheceu a do seu pai. Foi correndo, afoito e admirado como Padim acertara as coisas.
Encheu o pulmão de ar, o sorriso de entusiasmo e... tropeçou. Deu de cara com o corpo do seu pai esticado no chão e um buraco na testa. O pai de Antonio, ainda que bruto e arrogante, era seu pai, e ele o amava. O sorriso que enchia o rosto de Antonio de beleza foi arrancado por uma raiva, uma tristeza. A fé de Antonio foi estremecida.
 O menino levantou-se e encarou os dois homens assassinos do seu pai. O peito cresceu, mas ele tinha consciência que não poderia enfrentar aquelas bestas sozinho. Gravou cada traço do rosto de cada um e prometeu, segurando na mão do pai, que um dia eles iriam pagar pelo o sofrimento alheio. Com essa decisão, Antonio escolhera seu caminho: O sol endiabrado de todos os dias.

Dessa forma virou rei do sertão, conheceu Maria Bonita, vez por outra conversa com Padim, e nunca mais largou a espingarda e a caneta. Um dia, lendo um livro, descobriu que precisava de um pseudônimo, e então Antônio Virgulino tornou-se o “Lampião”. 

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